A pílula da inteligência

“Eu tinha que me preparar para um trabalho e resolvi tomar um comprimido. O resultado foi incrível. Consegui estudar 12 horas sem parar.”
“Era uma época agitada na minha vida. Eu fazia faculdade de direito, trabalhava num escritório e ainda estudava para concursos públicos. Comecei a usar um remédio que o neurologista havia receitado para a minha tia. Não tive nenhum efeito colateral e senti um belo aumento na minha concentração. Na época das provas, eu aumentava a dose.”
“Fiquei mais inteligente, tudo o que estudo é mais bem aproveitado. Graças ao remédio, passei no vestibular de química e virei um dos melhores alunos da classe. Agora decidi prestar vestibular para economia. Consegui uma bolsa em um cursinho depois de ficar em 1º e 2º lugar em vários simulados. Tenho consciência de que outros estudantes também usam o remédio. Mas espero que ele não se popularize. Afinal, se todo mundo tomar, como vou me destacar?”
Esses relatos são reais. São os depoimentos de Augusto** (26 anos, doutorando, Recife), Henrique (25, advogado, Brasília) e Marcos (21, estudante, Rio de Janeiro). Eles são pessoas normais, sem nenhum problema no cérebro. Mas decidiram tomar medicamentos tarja-preta, desenvolvidos para tratar disfunções neurológicas – mas que, em pessoas saudáveis, podem provocar uma espécie de turbo mental: intensificar a atenção, a concentração, a memória ou certos tipos de raciocínio. Ou simplesmente ajudar a pensar mais, por mais tempo, sem cansar. E quem não quer isso, afinal? Um estudo recém-publicado no jornal científico Nature revela que 25% dos universitários tomam ou tomaram algum tipo de remédio para tentar aumentar seu desempenho cognitivo. E uma nova geração de medicamentos, supostamente mais segura, acendeu de vez o interesse pelas pílulas da inteligência – que cada vez mais médicos, executivos e até cientistas estão tomando.
**Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados. Depoimentos concedidos à jornalista Gisela Blanco
Tanto é que um grupo de neurologistas das Universidades da Califórnia, da Pensilvânia, de Cambridge e Harvard escreveu um manifesto explosivo, que está dividindo a comunidade científica. Ele defende que certos medicamentos, que hoje são tarja-preta (de venda e uso controlados), sejam totalmente liberados – para que todo mundo possa tomá-los e aumentar o próprio QI. “A engenhosidade humana nos deu meios de aprimorar nosso cérebro, com invenções como a escrita, a imprensa e a internet. Essas drogas deveriam ser encaradas da mesma forma: são coisas que a nossa espécie inventou para melhorar a si mesma”, afirmam os cientistas. Loucura?
Talvez. Mas a verdade é que a maior parte das pessoas já consome substâncias para turbinar a cabeça. Quando você toma uma xícara de café para ficar mais ligado, está ingerindo cafeína – e, com isso, provocando alterações no próprio cérebro. Se acorda doente e toma um antigripal para trabalhar melhor, idem (vários remédios do tipo contêm um estimulante, fenilefrina). E tudo isso é plenamente aceito pela sociedade. Pode ser que, no futuro, as pílulas da inteligência sejam consideradas tão corriqueiras e inofensivas quanto um cafezinho.

Menos barato e mais cognição

Fim dos anos 70. Um laboratório francês começa a procurar soluções para a narcolepsia, um distúrbio que causa sonolência excessiva durante o dia e afeta 0,2 a 0,5% da população mundial. Depois de muitos anos de pesquisa, os cientistas chegam a uma droga promissora, que aparentemente não tem os efeitos colaterais dos outros tratamentos. Ninguém sabe exatamente como ela funciona (parece alterar os níveis de vários neurotransmissores, como dopamina, serotonina e noradrenalina, e com isso facilitar a comunicação entre os neurônios), mas o fato é que funciona. E o melhor: não provoca euforia, não dá barato e não vicia – os grandes problemas dos remédios até então usados para tratar a narcolepsia.
O novo medicamento é batizado de modafinil e lançado na França em 1994. Logo atrai o interesse dos militares. O Exército francês, e depois o americano, começaram a testar o remédio. O objetivo não é criar uma safra de guerreiros superinteligentes – é simplesmente evitar que durmam. E funciona. “O modafinil permite que indivíduos saudáveis fiquem acordados por mais de 60 horas, sem efeitos colaterais”, conclui um estudo do governo francês. Imagine só. Um soldado que consegue ficar quase três dias sem dormir, sem nenhuma perda de desempenho mental. Ideal para a guerra. E o modafinil foi se espalhando. Hoje, ele é distribuído de forma rotineira aos militares americanos (principalmente pilotos da aeronáutica e soldados que precisam trabalhar durante a noite).
Com tanta popularidade, a droga começa a atrair a atenção dos cientistas civis. Em 2003, pesquisadores da Universidade de Cambridge decidem testar o remédio em 60 voluntários saudáveis e descansados. E descobrem um efeito surpreendente. Sob efeito da droga, eles tiveram desempenho bem melhor em alguns testes cognitivos. Ou seja: tecnicamente, o remédio fez com que os voluntários ficassem mais inteligentes. Eles se sentiram muito bem e não sofreram nenhum efeito colateral. Um remédio seguro, que não tem consequências ruins e melhora o funcionamento do cérebro?
Foi o suficiente para explodir o interesse no modafinil, que começou a ser apresentado pelo fabricante (a empresa americana Cephalon, que comprou o remédio dos cientistas franceses) como uma solução para quem vive cansado e deseja ter mais energia no dia a dia – o laboratório tentou aprovar sua droga até como remédio para jet lag. Essa ofensiva de marketing foi considerada irresponsável pelo governo americano, que aplicou uma multa milionária no laboratório. Mas isso não foi o suficiente para brecar a mania do modafinil, cujas vendas quintuplicaram e bateram em US$ 1 bilhão anuais. E isso só nos EUA, sem contar os outros países (entre eles o Brasil, onde a droga foi lançada este ano).
Apesar de todo esse entusiasmo – ou exatamente por causa dele -, você deve estar se fazendo algumas perguntas. Será que, como acontece em tantos casos que envolvem a indústria farmacêutica, não existe um exagero nisso tudo? Será que, com o uso contínuo, a longo prazo, drogas como o modafinil não podem fazer mal? E será que é uma boa ideia mexer com a química do cérebro? Muitos cientistas têm levantado essas questões, ainda sem respostas definitivas (mais sobre isso daqui a pouco). Quem toma remédios para turbinar a própria cabeça está assumindo um risco sério. Mas não é difícil entender por que cada vez mais pessoas fazem isso. Afinal, a busca por substâncias capazes de nos tornar mais espertos é um sonho que se perde na noite dos tempos. Sem exagero: desde que a civilização existe, tem gente querendo melhorar seu desempenho intelectual.
Veja o caso dos soldados do Império Romano, por exemplo. Eles comiam alho puro, porque acreditavam que lhes dava inspiração (sem falar na prova de coragem que devia ser comer aquilo). Entre outros povos, o costume era beber cerveja – sim, cerveja! – na expectativa de que o álcool conferisse aos soldados a bravura necessária para combater. Conforme a química evoluiu como ciência, as drogas foram se sofisticando. E os intelectuais, caindo nelas. No século 16, o famoso filósofo Francis Bacon admitidamente consumia uma série de produtos – de tabaco a açafrão – na expectativa de tornar sua mente mais afiada. O escritor Honoré de Balzac, no início do século 19, tomava café aos montes para produzir, porque a bebida “afasta o sono e nos dá a capacidade de nos manter por mais tempo no exercício de nosso intelecto”. E Sigmund Freud acreditava que a cocaína pudesse ser um poderoso auxílio para a mente.
Mas os estimulantes só entraram na era moderna em 1929, quando o químico Gordon Alles introduziu o uso médico das anfetaminas (para tratar asma e bronquite). Na 2a Guerra Mundial, elas já tinham feito a cabeça das pessoas – tanto os nazistas quanto os aliados distribuíam a droga a seus soldados no front. Deve ter sido, além de a mais violenta, a guerra mais insone e neurótica de todos os tempos. Afinal, como você já deve ter ouvido falar, as anfetaminas são estimulantes fortíssimos – e tão viciantes quanto as piores drogas ilegais.
A busca por um turbo mental mais seguro começou a se sofisticar em 1956, quando surgiu o metilfenidato – mais conhecido por seu nome comercial, Ritalin. Esse composto químico é um derivado das anfetaminas, supostamente com efeitos mais leves e controlados. Os cientistas desenvolveram a droga para tratar distúrbio de déficit de atenção, depressão e outras condições médicas. Mas, sem saber, eles estavam lançando a pedra fundamental da indústria das drogas da inteligência – pois haviam criado o primeiro estimulante razoavelmente seguro. Ele não é inofensivo. Na verdade, pode ser muito perigoso (leia mais a seguir). Mas é considerado seguro o bastante para ser receitado a milhões de crianças em todo o mundo – e, até o surgimento do modafinil, era a droga preferida de quem busca turbinar a própria cabeça.

O Viagra do cérebro

Muitos “aprimoradores cerebrais” do passado acabaram se revelando apenas drogas viciantes, que pouco efeito realmente tinham sobre a inteligência. Basta ver os exemplos acima para sacar que, nessa busca desenfreada pelo caminho mais fácil para o desenvolvimento mental, muita besteira foi vendida como panaceia. Então, o que mudou? Muita coisa.
No século 19, Freud tinha de desenvolver suas teorias da mente (com seus acertos e erros) tratando a cachola das pessoas como uma caixa-preta, cujo funcionamento exato era um mistério, imune a qualquer tipo de estudo. Hoje, existem técnicas avançadíssimas de mapeamento cerebral que permitem enxergar o que acontece na cabeça das pessoas, em tempo real, quando elas estão sob efeito de uma determinada droga. Não é à toa que os anos 90 foram batizados de “a década do cérebro”. Em alguns casos, a ciência consegue explicar passo a passo as reações moleculares de certos remédios no corpo humano.
Outra coisa: como a medicina como um todo está avançando a galope, as pessoas estão vivendo cada vez mais. Com a velhice, surgem problemas cognitivos típicos – como perda de memória e dificuldades de raciocínio. Por isso, a indústria farmacêutica está interessadíssima em criar remédios que possam prolongar ou restaurar a saúde do cérebro. Imagine o que acontecerá quando alguém inventar uma droga que faça pela mente o que o Viagra fez pelo sexo. Será uma revolução. E, quando ela acontecer, os jovens também vão querer experimentar o tal remédio e ver o que ele pode fazer.
Aliás, isso já está acontecendo. Quer um exemplo? Alzheimer. É uma doença degenerativa terrível, em que placas de uma substância chamada beta-amiloide começam a se formar no cérebro. O resultado é uma perda significativa da capacidade de gerar memórias. Conforme a doença progride, acaba desembocando na demência e, por fim, na morte. Diversas drogas estão sendo testadas na esperança de, pelo menos, reduzir o impacto da doença, ajudando a fortalecer os sistemas cerebrais ligados à memória. E as mais promissoras são as ampaquinas, que parecem reforçar as respostas dos neurônios a um neurotransmissor chamado glutamato (antes que você pergunte: não, não é o mesmo glutamato do tempero Aji-No-Moto e dos pratos da culinária chinesa). Ainda não existem testes suficientes para provar que as ampaquinas efetivamente melhoram o funcionamento do cérebro. Mas parece que sim – e já tem gente a fim de testar essa classe de drogas também em pessoas saudáveis, para ver se elas adquirem supermemória.
Outras drogas da inteligência já foram testadas em humanos – e até já estão no mercado. Como o donepezil, que também foi desenvolvido para tratar Alzheimer. Num estudo feito com pilotos de avião, ela realmente demonstrou efeito sobre a memória. Dois grupos de voluntários foram testados. E os que haviam tomado donepezil tiveram mais facilidade para se lembrar, um mês depois, de informações que haviam recebido sob o efeito da droga.
Os cientistas estão descobrindo que substâncias mais antigas também podem ter efeitos positivos sobre a inteligência. Como uma droga chamada piracetam, que manipula, de um modo ainda não totalmente compreendido, os neurotransmissores cerebrais – entre eles, possivelmente, o glutamato. O piracetam é bem conhecido dos médicos, e considerado bastante seguro. Tanto é que, em alguns países, ele nem é comercializado como remédio, e sim como suplemento alimentar (no Brasil, só pode ser comprado com prescrição médica). Seus usuários dizem que ele ajuda a “lubrificar” o cérebro, estimulando a microcirculação de sangue dentro do órgão.
Às vezes, a contribuição pode vir de onde menos se espera. Olha só esta: um antialérgico chamado dimebolina, que foi criado por cientistas russos para combater a chamada febre do feno (um tipo de rinite alérgica), parece ser um aprimorador mental excepcional. Estudos preliminares sugerem que ele melhora o desempenho de voluntários em testes cognitivos, além de deixá-los mais despertos e atentos. Drogas como essa são chamadas de anti-histamínicas, porque inibem a ação das histaminas – substâncias que controlam a resposta do sistema imunológico (daí sua relação com a alergia) e também atuam como neurotransmissores. No cérebro, existem vários tipos de receptor de histamina. Dependendo de qual deles é influenciado pela droga, efeitos diferentes podem acontecer. É por isso que muitos antialérgicos, principalmente os mais antigos, causavam sonolência. Já as drogas mais modernas, que exploram apenas um determinado tipo de receptor de histamina, podem acabar tendo o efeito oposto, melhorando o grau de atenção e disposição do indivíduo – e até deixando-o um pouco mais inteligente.
Fonte: super.abril.com.br

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